top of page
  • Marcos Sarvat

2004 - Prescrição médica para a assistência médica

Alguns gerentes, economistas, administradores e gestores em geral (entre eles alguns médicos) devem ser alertados para o risco de abordar a questão da assistência médica "focando na gestão". Alguns chegam a imaginar que um hospital seria uma "fábrica de saúde" (ou de combate à doença, dependendo de um viés ideológico purista) e confundem assistência médica com produção industrial.


Economistas e administradores nunca atenderam um paciente, nem enfrentaram um ambulatório lotado, mas claro que isso não lhes impede de ter sensibilidade para com o problema assistencial. Por outro lado, médicos podem aprender algo de economia e gestão (vide a febre de MBAs), embora possam como isso se esquecer do que seja respeitar uma pessoa que sofre.


Com esse jogo de profissões e palavras pretendemos ressaltar que a Medicina não pode nem deve ser exercida como comércio (vide artigo quase oculto do Código de Ética), muito menos como indústria, mas sim como o mais absoluto artesanato. Ou melhor, o mais nobre artesanato do planeta, tratando de cada pessoa como sendo (e é!) absolutamente única.


Tal drama é marcadamente sentido e relatado por todo cidadão que adoece, ou que vê seu filho internado num CTI. E como todos, mais cedo ou mais tarde adoeceremos e morreremos (perdão por lembrar!), é prudente, mesmo que por egoísmo, que mantenhamos o tal "foco gerencial" na pessoa, pela qual vale a pena tentar de tudo, e (heresia?), custe o que custar!


Definitivamente uma pessoa enferma não é atendida pelo governo, não é examinada pelo plano de saúde, nem é operada pelo hospital. É o médico, aquele profissional bem formado, técnica e eticamente, relativamente bem descansado e remunerado (lembremo-nos!), motivado, interessado, atualizado e abastecido de recursos físicos (materiais e medicamentos) e psíquicos (não o façam sentir-se explorado!) por um sistema (bem gerenciado, é claro) que irá buscar uma solução para aquele indivíduo singular, debilitado e queixoso, que está à sua frente, naquele exato momento.


Médicos devem cuidar de gente, uma a uma, bem devagar, sem pressa, com atenção especial às peculiaridades de cada pessoa, sem fazer economia, sem medir esforços, ou não? Ou será mera pieguice toda essa preocupação? Fábricas de larga escala são inimagináveis na área de saúde, a não ser para aplicar vacinas. Assim, não existe nem deve existir "efeito Wal Mart" (produção em larga escala) algum em saúde, pois (atenção!) é impossível massificar atendimento médico.


Na verdade, o único caminho para uma efetiva redução de gastos com doenças passa por prevenção maciça, tarefa precípua de um Estado que assuma minimamente sua função de oferecer educação, saneamento, transporte, segurança, emprego, renda e acesso a alimentos de boa qualidade e preço justo. O resto é total delírio, uma absurda utopia organizacional! E lembremos sempre que grande parte das enfermidades não é passível de qualquer prevenção, e no máximo podemos oferecer diagnóstico e tratamento precoces - a critério médico, ou prevalecerá um critério econômico, ou ambos?


Concordamos que de fato o mercado está entortado, mais pelos governos, que não fazem o que devem, e pelos planos e seguros de saúde, que fazem o que não devem, do que pelos profissionais médicos, especialistas ou não, que em sua maior parte fazem apenas o que podem...


Os gerentes de Harvard, luminares criadores do managed care, ao proporem "inovações disruptivas, processos e tecnologias mais simples/baratos, ao alcance de mais pessoas, sem intermediação de especialistas", brincam de malabaristas com peças do mais puro e frágil cristal: o vínculo de dedicação do médico ao paciente, a defesa da (qualidade de) vida acima de tudo, o empenho obsessivo pela reabilitação, a intolerância com o desistir, o inconformismo com a morte.


E se algum louco pensa (?) que após impor tal mutação à Medicina, poderá pedir que seja aberta uma exceção e seu filho seja tratado como "antigamente", pode esquecer, pois não encontrará médico credenciado algum que ainda preserve uma lembrança da primitiva e essencial alma de esculápio. Afinal, quem resistiria a tamanha manipulação e dissimulação? Em suma: o que estaríamos priorizando: a vocação ou o negócio?


Mantidos tais caminhos e discursos, certamente os cidadãos e empresas que produzem "bens mais duráveis, automóveis, computadores e copiadoras" serão cada vez mais prósperos - e herdarão a terra. E, se tais planos econômicos tortos derem certo, os médicos que criticam, analisam, experimentam, resistem e/ou adotam as novas técnicas e equipamentos, serão substituídos por profissionais de saúde mais limitados, dóceis e baratos. Saúde!


É a publicidade dos planos que alardeia exames, sofisticação e segurança. Os médicos declaram que desejam a co-participação e a co-responsabilidade por parte dos usuários. E esperam que lhes seja "concedido" um mercado livre e aberto aos mais competentes, um sistema que seja "saudável" para todos, onde de fato haja incentivo e respeito à qualidade da prática médica, sem credenciamento por governos ou operadoras.


Esse é o nosso valor, e essa é a luz que nos guia - há milênios.


Marcos Sarvat é médico otorrinolaringologista no RJ, secretário-geral da Sociedade Médica do Estado do Rio de Janeiro - SOMERJ, conselheiro do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro - CREMERJ e vice-presidente da Central das Entidades Médicas do RJ.


Fonte: Jornal da ABORL-CCF - 01/10/2004

Comentarios


bottom of page