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  • Marcos Sarvat

2020 - Enfim, o Brasil percebeu que está em guerra

"Falta sofrer uma guerra de verdade para o Brasil se tornar de fato uma nação"

Ouvimos muitas vezes esse estranho clamor que supõe que da destruição e do sofrimento pudessem advir consciência e solidariedade. Como se por milagre da loucura transitória, de um transe de ódio e agressividade, surgisse lógica e lucidez. Nós, os autodenominados animais racionais precisaríamos do eletrochoque de brutal perda física e emocional para acordarmos e priorizarmos a organização social e a progressiva civilização. Assim percebo, tendo ingressado na Faculdade de Medicina há 45 anos, o descompasso de nossa Sociedade com a saúde, o descompromisso com o sofrimento e a perda diária de chance terapêutica, vidas repetidamente travadas e interrompidas, por falta de acesso e condições, inações injustificáveis, clinica e economicamente. Um sistema que não funciona porque não querem ou não deixam que funcione, simples e complexo assim. Sim, os donos das verbas e senhores sórdidos e insensíveis das salas acima do SUS são burros, pois em todos os sentidos faria mais sentido prevenir, tratar precocemente e agir de forma eficaz para que o prometido direito, quer dizer, o pleno acesso aos serviços de saúde fosse garantido e todos encontrassem capacidade instalada para dar resposta às suas necessidades - desses que não podem nem deveriam ser condenados a esperar, calados. Todo dia, desde sempre, embora não fosse necessário que tantos passassem por isso de forma tão desassistida, muitos homens e mulheres, pais, filhos, avós, de todos os gêneros, cores e ideologias se tornam deficientes ou morrem, mas esse gotejamento diário de sangue, suor e lágrimas nunca pareceu sensibilizar políticos, jornalistas, cidadãos em geral e até mesmo as pobres vítimas, tão lesadas quanto inconscientes do melhor tratamento que poderiam ter recebido. E apenas enterra-se, crema-se, inventaria-se, culpa-se a doença ou a vontade divina, e a vida brasileira segue como sempre seguiu. Já para parcela significativa de médicos, enfermeiros e profissionais do front, cuja sensibilidade e empatia não tenha se perdido ou esgotado por tanto descaso, uma questão fica clara, a ponto de precisar ser gritada: - Ora, senhores, muitas vezes mais dos que os que vão morrer pelo coronavírus, morreram ou sofreram lesões irreparáveis porque não estamos tendo condições assistenciais, há muitos anos. Salta aos olhos, ouvidos, nariz e garganta que isso nunca os tenha motivado a ponto de viabilizarem o fornecimento ágil e prioritário de infraestrutura como agora se dispõem pela pandemia, embora tarde. E se me coubesse falar em nome de todos esses soldados, lhes diria apenas que certamente agiremos todos agora para que esse surto seja abordado e abortado da melhor forma possível, mas alertaria para que assumissem o compromisso público de jamais retornarmos à cínica e desnecessária miséria com que inúmeras outras doenças de milhares, senão milhões, de brasileiros vêm sendo (mal)tratadas ao longo de nossa história. Pedimos apenas isso, e que aprendamos algo com essa guerra tão antiga e ignorada quanto indesejada - e agora inevitavelmente visível: o que para os profissionais da saúde era crônico e generalizado se tornou gravíssima, aguda e específica emergência. Ao trabalho!

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