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  • Marcos Sarvat

2020 - DOENÇA: a minha, a sua e a nossa

Era 1976, cursava o 2º ano da faculdade de medicina, final de dia, chego em casa e minha mãe recebia amigas. Tento passar despercebido mas ela me chama e apresenta, orgulho de mãe fazendo filho pagar mico: “- Ele está estudando medicina, tem muita pena das pessoas!”

Vingativo retruquei, para chocá-la: “- Não, mãe, eu não tenho pena de doente! Tenho raiva de doença!”. Para quem não entendeu, explico a lógica de tal aparente grosseria: a expressão de “pena” pode ser percebida não como empatia, mas como uma forma inerte de consolo e lamento, uma declaração de deficiência, uma constatação de fracasso, um carimbo de inutilidade. Tanto que ofende os deficientes e idosos tratá-los "com pena". Bem diferente de ter piedade, e a partir daí ajudar, recuperar, reabilitar, algo como "reconhecer e promover habilidades". Já uma raiva "das boas", a que eu me referia, caracteriza uma mistura de indignação e inconformismo. A doença como algo inaceitável, destino injusto e imerecido a ser combatido com todas as forças. Uma injustiça da natureza, uma provocação ao ser humano. Aliás, chega de ouvir que “a natureza é perfeita”! A vida é maravilhosa, admirável, fantástica, o que quiserem aplicar de mais superlativo, mas o termo perfeição definitivamente não se aplica. Para cada um de nós, dos que nascem doentes aos que se tornam, e aos que envelhecem e progressivamente degeneram, todas essas limitações, todo esse sofrimento e toda essa imperfeição significam um constante desafio à ciência, que segue buscando garantir uma existência eternamente saudável enquanto dure e, quem sabe, a imortalidade... Existem várias formas de encarar uma doença. Claro que a sua própria doença o move, e ser logo tratado é sua máxima prioridade. É quase um "dane-se o resto". Assim, um senador quando tem uma virose, falta à sessão. Um ministro do supremo quando tem febre, falta ao julgamento. Uma autoridade cancela sua agenda quando adoece. O sistema prevê licenças e afastamentos de funcionários públicos e privados. Assim, quem tem seguro ou emprego em geral prioriza a sua própria saúde - e pára tudo para se cuidar. Superada uma eventual ameaça de demissão, espera-se no máximo algumas horas e tem-se tudo resolvido ou bem encaminhado, e cumpre-se uma convalescência. E se for um ente querido, em geral também param tudo, por justificada preocupação, e conseguem cuidar do filho ou de quem for. Mas e a saúde “dos outros”, daqueles que "não são você", isso o move e comove? E mais, como ficam os autônomos e informais, os que “não podem” parar? E aqueles cuja assistência falha porque tarda, que ficam nas filas por horas, aguardam tratamentos por meses e anos? Será que não poderíamos, como sociedade mais solidária, igualmente priorizá-los como fazem os que podem - e fazem consigo mesmos e suas famílias? Ou será que você "se preserva" e consegue ignorar essa máxima prioridade do outro, daquele cidadão distante e invisível? Talvez aí esteja a grande resposta que muitos médicos e enfermeiros, e outros profissionais da saúde, não sabem dar prontamente, quando questionados sobre por que escolheram essa profissão. Seria, creio, simplesmente porque "sentem a mesma aflição e pressa em tratar do outro como se a doença fosse em si mesmo". E alguns até priorizam o outro, adoecendo por tanta dedicação, viciados em doses de bem estar "na veia" obtidas pelo exercício da piedade (termo condenado à pieguice), atávica motiva-ação pela cura do outro. Esse é o sentimento da maior parte dos médicos, enfermeiros e profissionais da saúde, no seu dia a dia, e esse é o apelo dos idealistas (palavra fora de moda?) que clamam por essa empatia e mobilização para que todos os doentes sejam tratados como cada um gostaria de ser tratado. O time da saúde mantém uma forte percepção de que a doença do outro é sua prioridade de vida, e esse sentimento primal e motivador vem sendo desconsiderado, humilhado e frustrado. Dirão que não haveriam recursos. Mas hoje ficou claro que existem e sempre existiram, mas como a doença é nos outros, desconsideraram saneamento e habitação e se ocuparam e locupletaram com investimentos absurdos sem retorno social algum, tais como olimpiadas e copas. Pois então, é neste exato momento em que todos se sentem ameaçados, que percebe-se (?) o quanto que a saúde é muito mais importante que tudo - mais que todos os aspectos que fazem, reconheça-se, a vida de fato valer a pena: educação, cultura, arte, passeios, família, viagens, reuniões, eventos, esportes, jogos, praias, festas e carnavais, na ordem que preferir... Esse conceito de valor fica claro quando, agora, para conservarmos ou recuperarmos a nossa saúde para curtirmos tudo aquilo de bom da vida, se tornou imperioso que tudo parasse. Tudo parou e só voltará quando a saúde de todos, não apenas a sua ou a minha, estiver garantida. Nossa esperança maior, onde concentramos todo o otimismo de um futuro melhor e que nos motiva ao intenso trabalho que nos será ora exigido, é de que essa noção de valor não se perca na memória após o primeiro rojão (que seja em breve!) do fim do confinamento.

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